Palavra Pastoral IMeL Saúde 92
20 de Novembro de 2021
A partir dessa semana, cada pastoral será escrita e assinada por um dos pastores ou por algum membro de nossa comunidade. Ziel Machado estreia esse novo formato. Boa leitura!
Nossas memórias e nossa identidade existencial, cultural e cristã
Um sonho expresso em nossa declaração de missão e visão de nossa igreja é que nos tornemos uma comunidade que reflita a realidade do Novo Céu e da Nova Terra, onde toda língua, povo e nação louve ao Cordeiro Santo de Deus; nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Em poucos meses eu e minha família iremos celebrar 30 anos como membros da Igreja da Saúde e temos sido testemunhas deste profundo processo de reconfiguração comunitária que o Senhor tem nos permitido viver como igreja. Ao longo deste período o Senhor tem nos tornado uma comunidade cada vez mais diversa, em termos culturais, e cada vez mais integrada em termos confessionais, compartilhando uma mesma fé, um mesmo batismo, um mesmo Senhor.
Qual é o lugar de nossas memórias neste processo? Compartilho com vocês minha experiência, neste período dedicado a celebrar o dia da Consciência Negra. O mesmo exercício poderia ser aplicado ao dia 18 de junho, dia da Imigração japonesa no Brasil, dia quando, o primeiro navio vindo do Japão, o Kasato Maru (em 1908) aportou no Brasil. Portanto estamos diante da mesma questão: “de que forma nossas memórias afetam nossa identidade?“.
Lendo um dos textos do Nelson Mandela me deparei com a seguinte afirmação; "a memória é o tecido de nossa identidade." No meu caso, minha memória é marcada pelos silêncios. Estive no sepultamento de minha negra bisavó Joaquina, no cemitério do Caju-RJ. Eu tinha 8 anos e, em um só dia, como uma criança atenta às conversas dos adultos, ouvi séculos de história sendo contada por meus tios avós. Uma história marcada pela dor e superação me foi passada por silêncios longos, onde somente eram mencionadas as superações, as realizações, acadêmicas e profissionais, da família.
Eu me lembro de caminhar pela rua e ver várias crianças se aproximando de minha mãe para pedir sua benção. Intrigado, perguntei se todos eram meus irmãos. "Sim", disse-me ela, "eles são seus irmãos de leite". Foi então que descobri que minha mãe era a mãe de leite de várias crianças de nossa cidade. Mamei em um seio solidário.
Com o filho da bisa Joaquina, meu vô, José Gustavo de Oliveira, convivi pouco. Em seus momentos finais de vida, enfrentando uma séria enfermidade, passou um tempo em nossa casa. Com ele fiz um "curso intensivo" de História da África. Ele me ensinou a jogar xadrez, me deu uma de suas medalhas de corrida (foi velocista), me deu uma moeda do Império (1864) para que eu nunca viesse a me esquecer da escravidão. Como criança jurei que jamais esqueceria (acho que foi meu primeiro juramento). Depois, já adulto, fui o primeiro de minha família a visitar o continente Africano e, caminhando por suas praias, tentei “ouvir nas conchas", a história que me foi silenciada. Hoje, pelos livros, estou conseguindo recuperá-la, afinal: "a memória é o tecido de nossa identidade."
Neste processo aprendi que minha identidade cultural eu a encontro nos meus ancestrais, portugueses e africanos, que aqui se encontraram, mas minha identidade existencial, eu a encontro na Imago Dei, na obra de redenção feita por Jesus Cristo e na transformação contínua, promovida pelo Espírito Santo. Quanto mais compreendo esta dimensão da minha identidade, mais a amo, mas me encontro.
Neste esforço de sermos uma comunidade culturalmente plural e singularmente confessional, precisamos nos reconectar com nossa história e suas particularidades, contudo precisamos ir além de nossas origens culturais, precisamos nos reconectar com nossa herança existencial, onde somos reafirmados, pela Escritura Sagrada, como imagem e semelhança de Deus.
Ziel Machado