Palavra Pastoral IMeL Saúde 145
19 de Novembro de 2022
Racismo: a dor presente não mais silente
Caminhando pela praia vamos deixando na areia as marcas de nossas pisadas, elas vão permanecer ali até que a próxima onda as apaguem.
O mesmo não acontece com outras marcas que produzimos na história. Algumas delas se tornam cicatrizes, um registro de uma dor vivida que, quando tocadas de forma inapropriada, na pele ou no coração, reavivam a dor nelas registradas. O racismo é uma cicatriz pessoal, familiar, comunitária, social, estrutural que se tornou um sistema de impiedade no qual, nosso país, tem se organizado. É uma expressão contundente de nossa iniquidade como nação, sobre a qual procuramos nos silenciar, recusando-nos a enfrentar sua permanência estruturante entre nós.
Lemos a realidade a partir dos lugares onde os nossos pés estão, assim sendo, a experiência da comunidade cristã, em relação ao racismo, não foge aos limites que vivenciamos na sociedade brasileira. Contudo, a dinâmica carismática na vida da igreja, vem produzindo rupturas, muitas vezes sem a devida reflexão, neste modelo de segregação social. Ainda assim, temos o desafio de lidar com o silêncio da igreja, com as expressões de adesão e, para o nosso completo horror, com a prática e justificativa explícita do racismo. Será necessário instruir nossa prática cristã e nossa confissão teológica com a história, de forma que possamos lidar, de forma crítica e autocrítica, com as raízes de nosso problema.
O esforço de compreensão deve estar marcado pela humildade. É preciso ouvir, precisamos entender o que aconteceu. Portanto será necessário trazer para o centro da conversa aqueles que estiveram, até aqui, à margem. Aqueles, e aquelas, que foram silenciados, os que que têm as cicatrizes em seus corpos, em suas almas.
Precisamos ouvir atentamente a Deus e ouvir também, atentamente, todos aqueles que têm sido sujeitos desta história.
Este esforço de compreensão teológica deve assumir uma dimensão de experimento, que nos permita uma inovação pastoral que nos ajude a lidar com as consequências desta escuta. Precisamos encontrar respostas novas para problemas antigos, respostas que nos permitam lidar com o racismo estrutural.
Refletindo sobre este tema proponho uma teologia que nos leve à tristeza, pois acredito no potencial transformador que ela tem. Considero que precisamos nos entristecer. Falo daquela tristeza segundo Deus, à que Paulo se refere: A tristeza segundo Deus produz um arrependimento que leva à salvação e não remorso, mas a tristeza segundo o mundo produz morte” (2Co 7.10, NVI).
Essa teologia deve levar a igreja à contrição, à tristeza profunda, segundo Deus, que produza arrependimento e nos leve à salvação. Uma tristeza que produza em nós o que produziu em Zaqueu (Lc 19.8). Ele, quando ele se encontra com Cristo, se arrepende, se entristece. Esta experiência de encontro faz com que ele decida dar a metade dos seus bens aos pobres; a devolver, quatro vezes mais, o que ele havia extorquido. Uma tristeza assim pode resultar em um conjunto de respostas diferentes ao problema. Ela tem o potencial de apontar caminhos para uma sociedade mais ampla, na prática da restituição e das reparações.
A cada dia ouvimos que já não basta não sermos racistas, que é necessário sermos antirracistas. Já passou da hora de encararmos este problema de frente. É necessário combater o racismo onde quer que ele se apresente, ainda que seja em nós.
Esta dor presente, e não mais silente, demanda de cada discípulo, de cada discípula, de Jesus Cristo uma nova atitude histórica, onde estejamos prontos para nos comprometermos nas variadas iniciativas que busquem responder, de forma adequada, este desafio histórico postergado. O faremos ouvindo de forma atenta e oferecendo respostas que estejam biblicamente embasadas na justiça do Reino de Deus.
Ziel Machado
*Este texto é parte do meu aporte para o capítulo sobre racismo escrito em parceria com Morgana Bostel e Luiz Santana, publicado no livro “Espiritualidade no chão da Vida”. Org. Valdir Steuernagel, ed. Mundo Cristão.